A onça do rio Carú

A noite veio repentina, como um véu escuro estendendo-se sobre a imensidão da floresta. Seu teto sem estrelas, sem luz ,por mais paradoxo que pareça, traz uma indescritível sensação de calma e uma incrível paz de espírito. O acampamento armado à beira do rio Carú, extremo oeste da Amazônia Maranhense, permitia ouvir o incessante borbulhar das águas rápidas rasgando caminho entre troncos e coivaras entrelaçados pelas margens, características de rios amazônicos. À noite a umidade do ar diminui sensivelmente e a aragem refrescante conforta seu corpo exaurido das pescarias do dia. No rio Carú navega-se por horas e horas em busca dos melhores pesqueiros por trechos que não permitem o uso do motor de popa devido às estruturas de pauleira que obstruem a passagem aqui e acolá, e aí, a opção é remo ou o marajá.
O orvalho caia lentamente escorrendo pelas copas fechadas das árvores e com ele o aroma agradável que exala das flores e frutos deixando o ar leve e perfumado, como se pudéssemos tocá-lo com as mãos num buquê invisível.
O acampamento, iluminado com a luz amarelada do candeeiro e da fogueira central, é tomado por um clima amável e descontraído. Todos atirados em suas redes após o jantar, discorrendo sobre suas performances, vantagens e alguns inevitáveis exageros do dia numa espécie de reminiscência dos acontecimentos da pescaria, tudo com muita alegria. São momentos como esses que nos levam a algumas reflexões, enaltecem o espírito e renova a nossa alma num momento singular e mágico. Isso não tem preço!
Minha rede estava paralela ao do Juba, a do Alessandro e Guiga, ao fundo, a do Maguari, um negro magro, alto, biótipo fora dos padrões regionais, lembrando um masai das planícies do Seringeti, talvez seus ancestrais. O apelido, certamente, uma alusão ao pássaro pernalta da Amazônia (Ciconia maguari), que vive nos grande lagos da floresta. Não tinha o hábito de andar calçado e seus pés enormes, apresentavam-se com os dedos abertos e esborrachados. Nascido e criado por aquelas plagas vivia da caça, pesca e do pequeno roçado de subsistência. O conhecemos de uma viagem anterior, no entanto, estava nos acompanhando pela primeira vez. Caboclo matreiro de conversa fácil, gaiato e brincalhão, mas sem perder a candura e a simplicidade do caboclo amazônico, com suas crendices e superstições. Gostava de vangloriar-se dos conhecimentos que tinha da região, o que era fato notório, mas exagerava nos causos. Era o nosso guia.
Enquanto conversávamos estendidos na rede, Maguari preparava duas fogueiras, uma ao fundo do acampamento no sentido da mata e outra na lateral, na boca de uma vereda que também rumava ao interior da floresta. Fingimos não entender a situação embora já tivéssemos usado a estratégia em outras oportunidades, sempre que acampados em áreas de floresta densa.
—O que tu vais fazer aí Maguari?—inquiriu-o um dos meus filhos.
—Fazê fogo mode as onças num chegá!
—Tu sossega, aqui não tem onça!—provocou o Juba.
—Num tem?! Aqui tem delas que carrega um boi no espinhaço! Dias atráis, lá prás banda do Juriti mataram uma de mais de treis braça. Da ponta da venta inté o rabo. A bicha era grande! Morreu na fumaça do tiro adespois de cortá dois cachorro no dente.
Agora era só dar trela pro caboclo prá conversa espichá.
—Quem foi que matou essa onça?—Alessandro começava a animar o mateiro.
—Siô, foi Zé Jurupoca, um cumpadi meu, cabra caçadô di onça e dos bão! A danada morreu com a cabeça do porco entalada na goela!
—Espera aí Maguari! Tu não estás querendo dizer que a onça engoliu o porco todo!
—Sim sinhô! Só não engoliu todo mode os cachorros que acuaram e cumpadi Zé Juropoca chegou na hora.
O riso foi geral, de forma estrondosa e espalhafatosa.
—Maguari, onça não engole a presa inteira. Ela esquarteja o animal e vai engolindo aos pedaços. A sucurujú é quem engole de uma só vez!
Alessandro e o Guiga tentavam esclarecer incoerência de comportamento do felino sem sucesso.
—É que ocêis num conhece os bicho daqui! São tudo sabida! Quando num dá tempo de rasgá a carne ela engole inteiro!—argumentava sem aparentar nenhuma sujeição.
As duas fogueiras estavam prontas. Os toros de lenha iriam arder durante toda a noite segundo a previsão do guia que agora se aconchegava à rede.
O Juba o atentou dizendo que as fogueiras iriam servir só para atrair a surucucu (Lachesis muta), a temível víbora amazônica.
—Num tem pobrema não! Se ela chegar aqui acaba pulando no fogo e morre tosquiadinha, tosquiadinha. Uma veis tava eu, Chico Chaga e….. —lá vinha outro causo desses prá não perder o fio de meada. Suas histórias fluíam fácil do seu imaginário aproveitando sempre as deixas de qualquer um de nós.
—Ei Maguari, agora chega. Vamos dormir um pouco!
A noite foi tranqüila, o sono profundo nos pegou de forma inevitável. Foi eu quem primeiro acordou. Dei uma volta pelo acampamento e vi as duas fogueiras do Maguari apagadas, apenas as cinzas ainda quentes. Apesar da penumbra no interior da floresta notava-se a névoa branca que subia lentamente da superfície das águas do rio Carú, refletindo timidamente a luz do sol. Enquanto preparava o café, um bando de araras pousou no alto de um bacurizeiro, enraizado majestosamente ao lado do acampamento, num alarido tão estridente que ecoava há léguas pela mata, como se estivessem querendo, propositadamente, chamar nossa atenção. Maguari tinha acabado de levantar-se. Corri ao interior do acampamento para despertar os meninos. Não podiam perder a aquele espetáculo da natureza. Não era a primeira vez que estávamos sendo privilegiados com tão rara contemplação, contudo, não é sempre que se tem a chance de se interagir com cenário dessa magnitude e precisávamos aproveitar. A visibilidade ainda era pouca, mas podíamos divisar seus movimentos e suas cores brilhantes. Ficaram naquela folia por alguns minutos e numa revoada sincronizada cruzaram o rio até desaparecerem pelas copas das árvores.
A higiene pessoal fazíamos ali mesmo no rio. Uma pequena praia de areia muito branca nos deixava à vontade. Reunimo-nos para café que deveria ser avexado, pois a programação era aproveitar bem o dia. O semblante de todos sugeria que o descanso da noite fora sereno e reparador. Alessandro, Juba e Guiga estavam impacientes e com enorme expectativa para a pescaria visto que, como combinado, o guia iria nos levar no rio Juriti, local de grandes surubins, garantia. De pé, com uma caneca de café com leite numa mão e biscoitos na outra, puxou conversa.
—Seu dotô drumiu bem?
A pergunta me parecia meio irônica envolvida em um pouco de deboche. O negro queria nos provocar.
Dei uma inspirada profunda de ar puro e respondi calmamente:
—Dormi nada Maguari! Fiquei a noite toda atiçando a lenha das fogueiras ali fora.
—As fuguera apagaram?
—Não apagaram porque eu não deixava. Já estava dormindo quando escutei um barulho que parecia um assopro, fuuuuuu …..fuuuuu. Quando eu olhava tava lá o fogo enfraquecido, quase apagado. Levantava atiçava a fogueira outra vez e mal deitava na rede escutava aquela zuada: fuuuuu….fuuuuu, era o assopro novamente e lá ia eu chuchar o fogo e assim foi até amanhecer o dia.
Os meninos começaram a rir dissimuladamente para não desviar a atenção do caboclo, muito interessado na conversa.
—O sinhô num arreparô o que era?
—Reparei sim, mas só de madrugada. Já estava cansado de deitar e levantar, deitar e levantar. Agarrei a lanterna e foquei a luz nas moitas, levei um baita susto com o que vi.
Nessas alturas o negro já não agüentava mais de curiosidade.
—Óxente! E era o que?
—Tu nem vais acreditar! Duas onças acoitadas atrás das árvores, assoprando o fogo para apagar e nos atacar. Eu acendia, elas apagavam, acendia e elas apagavam e isso foi noite afora!
Os meninos não se contiveram e caíram numa gargalhada deslavada quase rolando pelo chão. Parecia que tínhamos pregado uma peça no caboclo. Mas não perdeu a compostura. Olhou para os meninos que continuavam a rir no tom de escárnio e muito sério retomou a parte da conversa:
—Óxente e foi mesmo? Eu num falei! Eu num falei! As bicha daqui tem muita sabidoria. Sabida que parece gente! Uma veiz, eu, mais cumpadi Zé Pitomba, fumo numa caçada e uma onça…
—Tá bom Maguari, tá bom! Vamos embora botar as tralhas no barco que o sol está levantando, deixa essa história prá outra hora.
Lá tava Maguari preparando réplica com mais um causo de onça que assoprava fogo só para não perder a pose. Fora interrompido por um dos meninos, mas arrematou:
—Óia só seu Roberto, tão pensando que é mentira! Esses minino num sabe de nada! Num é naum?
—É Maguari, é! Arrematei o assunto caminhando para o barco acompanhando os meninos.

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Roberto Menks

 
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