Cara Prá Lua cresceu na região sempre pescando com o pai e os irmãos para ajudar na sobrevivência da família como tantas outras crianças e adolescentes ainda hoje o fazem. Menino gostava de andar com uma turma de quatro ou cinco amigos de sua predileção, que juntos faziam suas traquinagens e perversidades típicas da idade. O mais chegado a ele era Bajorra, vizinho e quase irmão pelo qual até hoje nutre grande amizade e a recíproca é verdadeira. Num desses dias de vadiagem, com a lua ruim pra pescaria, saíram para a caçada de rolas num apicum nos limites da cidade, que na vazante formava uma extensa planície até o mangue. No caminho previamente combinado, juntaram-se a eles Derinho e Meu Grelo, garotos da mesma faixa etária, todos de bom relacionamento e de grande cumplicidade entre si. Cada qual com a sua baladeira no pescoço e uma boroca de pelotas de barro no costado, rumaram em direção ao campo, onde as rolas aos bandos se banqueteavam beliscando pequenos mariscos e insetos na maré baixa.
Já com o sol alto tinham nas borocas alguns pássaros abatidos por pelotas certeiras e decidiram, como sempre faziam, comê-los assados ali mesmo. Enquanto uns faziam o fogo e outros tiravam as penas e víceras das pobrezinhas, perceberam pela batida lenta e seca no solo, a aproximação de uma jumenta que procurava pastagem na parte seca do apicum, justamente onde estavam. O animal parou próximo ao grupo e começou a ceifar a erva salgada. A cada momento que erguia a cabeça com um tufo de capim do lado da boca, olhava para os meninos de forma curiosa e despreocupante. Aquilo era uma provocação! Uma jumenta novinha daquelas, sadia e toda ajeitadazinha andando por ali, só queria mesmo levá ferro. Bajorra o mais abusado e saliente da turma provocou:
—Embora esfregá essa jumenta?—enquanto pendurava as rolas num galho seco.
—Embora lá! —responderam quase juntos Derinho e Meu Grelo.
Cara Prá Lua tentou dissuadir os companheiros da empreitada, receoso que estava, mas foi voto vencido.
—Essa jumenta é do seu Ribinha e não tarda ele aparece por aqui e pode dá de cara cum nóis grudado na bunda da bicha. Isso num vai prestá! —tentando alertar os amigos.
—Qui nada Cara Prá Lua! É rapidinho! Vamu logo fazê uma escada com esse pé de pau—sugeriu Bajorra.
Apanhou um toro de madeira que, usado como degrau, facilitava o alcance na anca da jumenta na hora do revezamento do esfréga. Estava no comando e nessas horas a lealdade e a cumplicidade valem muito entre amigos e assim sendo, todos estavam juntos na mesma causa ainda que, Cara Prá Lua por mais que disfarçasse, mantinha-se um pouco relutante visto temer que o fato pudesse chegar até o dono da jumenta. Bajorra mentor daquela estripulia foi o primeiro da fila. No entanto ao subir no apoio improvisado, a jumentinha deu um passo à frente e ensaiou uma carreira quase o derrubando. Praguejou contra o animal e segurou-o pelo rabo enquanto Cara Prá Lua, Derinho e Meu Grelo, a prendiam pelo pescoço evitando que saísse do lugar, para que Bajorra desse logo uma ferrada na jumenta.
—Aquéta aí sua sacana! —esbravejava enquanto tomava posição para nova tentativa. O esforço de nada adiantava, quanto mais a seguravam mais inquieta e desassossegada ficava a jumenta e isso se tornava um problemão. Em geral são calmas e tranqüilas e aquela agitação não era coisa que estivessem acostumados a administrar, por mais esforço que desprendessem. Desistir não seria a opção das mais dignas para a ocasião. Não era uma jumentinha dessas, sem experiência, teimosa que iria demovê-los do objetivo. Subitamente, Cara Prá Lua agora já no clima da molecagem, teve uma idéia no mínimo original para não dizer genial. Derinho e Meu Grelo seguraram a jumenta pelo pescoço enquanto Bajorra e Cara Prá Lua a empurravam pelas ancas até a maré. Presa com as quatro patas atoladas na lama do mangue não podia sair do lugar, o máximo que conseguia era mexer a cabeça. Os quatro libertinos, também enterrados até as canelas no barro preto e pegajoso, dominaram com facilidade a jumenta que resignada e imóvel, se limitava a olhar para trás como se tentando entender aquela presepada. Todavia, não contavam com o inesperado. A maré subia rapidamente surpreendendo a molecada e a jumenta agora não podia sair do lugar. Estava literalmente atolada, estancada na lama. Puxaram-na pelo rabo, pela cabeça e nada! Não se movia um centímetro sequer. Nesse momento deram conta da encrenca e o desespero começou a inquietá-los. A maré continuava a subir e em pouco tempo o pobre animal estaria submerso, afogado de forma estúpida e covarde. Apesar de tudo, não iam permitir que isso acontecesse. Isso não!
Bajorra sugeriu uma idéia. Seu tio Zé Berada, certa ocasião liderou uma operação de salvamento em situação idêntica, de uma bezerra búfala. Lembrou-se dos detalhes e arquitetou o plano. Rapidamente teceram umas embiras forte de talo de carnaúba, abundante no apicunzal, circundaram o ventre da jumenta até o costado e por dentro, atravessaram um cambão comprido com o qual poderia alavancar a criatura na tentativa de virá-la na posição contrária e ajudá-la a sair do atoleiro. O esforço era brutal e se angustiavam à medida que a água da maré se aproximava da cabeça do animal. Após cada fôlego retomavam as posições da operação. Dois de cada lado tentando suspender a jumenta pelo laço que, como se compreendendo a tragédia eminente, começou a se mover freneticamente de tal forma que os moleques sentiram-se mais otimistas e aliviados. A maré continuava subindo. O animal aflito levantava a cabeça e o plexo na tentativa desesperada de safar-se da armadilha. O movimento desesperado e a corrente mais forte das ondas começou a diluir a lama grudenta facilitando o movimento do animal que, sincronizado com a força dos quatro, conseguiu virar-se e chegar à terra firme. A euforia era grande e o sentimento de alívio maior ainda. A jumenta toda espargida de lama, saiu troteando em direção ao campo seco, desaparecendo entre as carnaubeiras. Fora aliciada, humilhada e quase vítima de afogamento e tudo que queria naquele momento era manter maior distância possível daqueles sádicos.
Os quatro respiraram fundo, livraram-se da lama fétida da maré e voltaram ao local do fogueira quase apagada. Reacenderam o fogo, lavaram os pássaros e prepararam o assado. Tudo não passara de um grande susto que iria servir de aprendizado. Coisa de mininu espríto de porco diriam hoje.
Sentados em torno da fogueira começaram a rir e fazerem piadas entre si sobre a ocorrência. Cara Prá Lua olhou para os companheiros e resmungou:
—Eu num falei que isso num ia prestá?
—Nunca mais nóis vai ferrá essa fela da mãe! Num qué colaborá vai se fudê! —decidiu Bajorra.
—A jumentinha do seu Vádo é mais mansinha e jeitosa, já conhece nóis e vem num estalá dus dedos! Cum ela num tem erro!—arrematou Derinho.
Nisso Meu Grelo, olhando para o lado, chama a atenção dos companheiros.
—Qui merda óia que vem vindo aculá!
Era seu Ribinha o dono da jumenta, que se aproximava do grupo carregando um laço enrolado na mão.
—Essis mininus num virum uma jumenta novinha pastando por aqui naum?
—Vimu naum sinhô seu Ribinha!—responderam apressados.
—Mas se virem pode levá ela lá pra casa que lhes dô um agrado!
—Tá bão seu Ribinha! Dêxa cum nóis!
O caboclo recusou gentilmente uma banda mal assada de uma rola oferecida por Cara Prá Lua, passou a mão na cabeça do Bajorra enquanto tomava o rumo de casa e elogiou:
—Êta mininus bãonzinhus! Inté mais intão!
—Inté mais seu Ribinha!
Bajorra e Cara Prá Lua são nossos companheiros de pesca na Ilha da Macacoeira.
Já com o sol alto tinham nas borocas alguns pássaros abatidos por pelotas certeiras e decidiram, como sempre faziam, comê-los assados ali mesmo. Enquanto uns faziam o fogo e outros tiravam as penas e víceras das pobrezinhas, perceberam pela batida lenta e seca no solo, a aproximação de uma jumenta que procurava pastagem na parte seca do apicum, justamente onde estavam. O animal parou próximo ao grupo e começou a ceifar a erva salgada. A cada momento que erguia a cabeça com um tufo de capim do lado da boca, olhava para os meninos de forma curiosa e despreocupante. Aquilo era uma provocação! Uma jumenta novinha daquelas, sadia e toda ajeitadazinha andando por ali, só queria mesmo levá ferro. Bajorra o mais abusado e saliente da turma provocou:
—Embora esfregá essa jumenta?—enquanto pendurava as rolas num galho seco.
—Embora lá! —responderam quase juntos Derinho e Meu Grelo.
Cara Prá Lua tentou dissuadir os companheiros da empreitada, receoso que estava, mas foi voto vencido.
—Essa jumenta é do seu Ribinha e não tarda ele aparece por aqui e pode dá de cara cum nóis grudado na bunda da bicha. Isso num vai prestá! —tentando alertar os amigos.
—Qui nada Cara Prá Lua! É rapidinho! Vamu logo fazê uma escada com esse pé de pau—sugeriu Bajorra.
Apanhou um toro de madeira que, usado como degrau, facilitava o alcance na anca da jumenta na hora do revezamento do esfréga. Estava no comando e nessas horas a lealdade e a cumplicidade valem muito entre amigos e assim sendo, todos estavam juntos na mesma causa ainda que, Cara Prá Lua por mais que disfarçasse, mantinha-se um pouco relutante visto temer que o fato pudesse chegar até o dono da jumenta. Bajorra mentor daquela estripulia foi o primeiro da fila. No entanto ao subir no apoio improvisado, a jumentinha deu um passo à frente e ensaiou uma carreira quase o derrubando. Praguejou contra o animal e segurou-o pelo rabo enquanto Cara Prá Lua, Derinho e Meu Grelo, a prendiam pelo pescoço evitando que saísse do lugar, para que Bajorra desse logo uma ferrada na jumenta.
—Aquéta aí sua sacana! —esbravejava enquanto tomava posição para nova tentativa. O esforço de nada adiantava, quanto mais a seguravam mais inquieta e desassossegada ficava a jumenta e isso se tornava um problemão. Em geral são calmas e tranqüilas e aquela agitação não era coisa que estivessem acostumados a administrar, por mais esforço que desprendessem. Desistir não seria a opção das mais dignas para a ocasião. Não era uma jumentinha dessas, sem experiência, teimosa que iria demovê-los do objetivo. Subitamente, Cara Prá Lua agora já no clima da molecagem, teve uma idéia no mínimo original para não dizer genial. Derinho e Meu Grelo seguraram a jumenta pelo pescoço enquanto Bajorra e Cara Prá Lua a empurravam pelas ancas até a maré. Presa com as quatro patas atoladas na lama do mangue não podia sair do lugar, o máximo que conseguia era mexer a cabeça. Os quatro libertinos, também enterrados até as canelas no barro preto e pegajoso, dominaram com facilidade a jumenta que resignada e imóvel, se limitava a olhar para trás como se tentando entender aquela presepada. Todavia, não contavam com o inesperado. A maré subia rapidamente surpreendendo a molecada e a jumenta agora não podia sair do lugar. Estava literalmente atolada, estancada na lama. Puxaram-na pelo rabo, pela cabeça e nada! Não se movia um centímetro sequer. Nesse momento deram conta da encrenca e o desespero começou a inquietá-los. A maré continuava a subir e em pouco tempo o pobre animal estaria submerso, afogado de forma estúpida e covarde. Apesar de tudo, não iam permitir que isso acontecesse. Isso não!
Bajorra sugeriu uma idéia. Seu tio Zé Berada, certa ocasião liderou uma operação de salvamento em situação idêntica, de uma bezerra búfala. Lembrou-se dos detalhes e arquitetou o plano. Rapidamente teceram umas embiras forte de talo de carnaúba, abundante no apicunzal, circundaram o ventre da jumenta até o costado e por dentro, atravessaram um cambão comprido com o qual poderia alavancar a criatura na tentativa de virá-la na posição contrária e ajudá-la a sair do atoleiro. O esforço era brutal e se angustiavam à medida que a água da maré se aproximava da cabeça do animal. Após cada fôlego retomavam as posições da operação. Dois de cada lado tentando suspender a jumenta pelo laço que, como se compreendendo a tragédia eminente, começou a se mover freneticamente de tal forma que os moleques sentiram-se mais otimistas e aliviados. A maré continuava subindo. O animal aflito levantava a cabeça e o plexo na tentativa desesperada de safar-se da armadilha. O movimento desesperado e a corrente mais forte das ondas começou a diluir a lama grudenta facilitando o movimento do animal que, sincronizado com a força dos quatro, conseguiu virar-se e chegar à terra firme. A euforia era grande e o sentimento de alívio maior ainda. A jumenta toda espargida de lama, saiu troteando em direção ao campo seco, desaparecendo entre as carnaubeiras. Fora aliciada, humilhada e quase vítima de afogamento e tudo que queria naquele momento era manter maior distância possível daqueles sádicos.
Os quatro respiraram fundo, livraram-se da lama fétida da maré e voltaram ao local do fogueira quase apagada. Reacenderam o fogo, lavaram os pássaros e prepararam o assado. Tudo não passara de um grande susto que iria servir de aprendizado. Coisa de mininu espríto de porco diriam hoje.
Sentados em torno da fogueira começaram a rir e fazerem piadas entre si sobre a ocorrência. Cara Prá Lua olhou para os companheiros e resmungou:
—Eu num falei que isso num ia prestá?
—Nunca mais nóis vai ferrá essa fela da mãe! Num qué colaborá vai se fudê! —decidiu Bajorra.
—A jumentinha do seu Vádo é mais mansinha e jeitosa, já conhece nóis e vem num estalá dus dedos! Cum ela num tem erro!—arrematou Derinho.
Nisso Meu Grelo, olhando para o lado, chama a atenção dos companheiros.
—Qui merda óia que vem vindo aculá!
Era seu Ribinha o dono da jumenta, que se aproximava do grupo carregando um laço enrolado na mão.
—Essis mininus num virum uma jumenta novinha pastando por aqui naum?
—Vimu naum sinhô seu Ribinha!—responderam apressados.
—Mas se virem pode levá ela lá pra casa que lhes dô um agrado!
—Tá bão seu Ribinha! Dêxa cum nóis!
O caboclo recusou gentilmente uma banda mal assada de uma rola oferecida por Cara Prá Lua, passou a mão na cabeça do Bajorra enquanto tomava o rumo de casa e elogiou:
—Êta mininus bãonzinhus! Inté mais intão!
—Inté mais seu Ribinha!
Bajorra e Cara Prá Lua são nossos companheiros de pesca na Ilha da Macacoeira.